Inteligência artificial e a necessidade de autossuficiência em dados no Sul Global
Por que é hora de melhores acordos sobre acesso a dados para países em desenvolvimento
Este artigo foi escrito para o Medium do Projeto de Governo Digital da Kennedy School, em Harvard, em Março de 2018. O original, em inglês, está no Medium.
Pesquisadores e empresários geralmente concordam que provavelmente haverá uma ampla aderência aos negócios baseados em Inteligência Artificial na América Latina, o que levanta a questão do impacto humano que sua adoção pode gerar. Algumas pesquisas sugerem que a Inteligência Artificial (IA) aumentará comprovadamente as taxas de desemprego.
No entanto, a previsão da substituição completa dos humanos pela Inteligência Artificial não é realista; em vez disso, a colaboração homem-máquina dará origem a um novo campo de negócios digitais baseado em “serviços inteligentes”.
Surgirão novas oportunidades, aumentando receita e criando novos empregos. A “4ª Revolução Industrial”, termo usado por Klaus Schwab, incentiva a coleta de dados por meio da digitalização com o entendimento de que os dados são um recurso essencial para o sucesso em qualquer indústria baseada em software. O impacto da IA está em debate. De qualquer modo, a lucratividade do big data levou as empresas a buscar agressivamente o próximo bilhão em termos de coleta de dados - algo que pode ser encontrado e explorado em países em desenvolvimento.
Os dados coletados pela indústria representam oportunidades de IA para governos, que podem melhorar seus serviços por meio da inovação. A inteligência baseada em dados promete aumentar a eficiência da gestão de recursos, melhorando a transparência, logística, distribuição de bem-estar social - e virtualmente todos os serviços do governo. O entusiasmo do governo eletrônico aumentou com a realização das aplicações possíveis, como o uso de IA para combater a corrupção, automatizando os recursos de rastreamento de fraudes das ferramentas de controle de custos. Controversamente, o entusiasmo da IA se espalhou para a distribuição de benefícios sociais, otimização da supervisão e controle de impostos, sistemas de pontuação de crédito, sistemas de previsão de crimes e outras aplicações baseadas na coleta de dados pessoais e confidenciais, especialmente em países que não têm proteções de privacidade abrangentes.
Existem tantas aplicações em potencial, que em dez anos, possivelmente, a sociedade estará operando de modo muito diferente. No entanto, muitos países não tem acesso aos dados que precisam para crescer, e apresentam menos condições tecnológicas para coletarem dados estratégicos sobre seus próprios recursos.
Dados úteis estão em todos lugar, mas apenas alguns podem tirar proveito. Além dos smartphones, os dados podem ser coletados de componentes IoT em espaços comuns, por exemplo, não se restringindo a espaços urbanos. A coleta de dados inclui tecnologias rurais, como sensores instalados em tratores, e se estende até dados sobre recursoso minerais, entre outros setores que sequer foram descobertos ainda pela digitalização. No entanto, mesmo quando a informação está relacionada a questões de importância pública em países em desenvolvimento - como dados retirados da malha rodoviária ou recursos vitais como água e terra - ela permanece oculta, longe do alcance de cidadãos ou gestores. Este arranjo mantém o público desinformado sobre as operações de seu país. As estruturas de coleta e distribuição de dados não são construídas para parcerias saudáveis entre a indústria e o governo, evitando que os países realizem o potencial delineado no parágrafo anterior.
Os dados necessários para o desenvolvimento de melhores cidades, políticas públicas e interesses comuns não podem ser alavancados se mantidos em silos fechados, mas o acesso muitas vezes custa mais do que o justificável. Dados são um recurso primordial para todas as fases de uma nova tecnologia, especialmente a adoção e integração de tecnologias, portanto, o necessário investimento de longo prazo em inovação precisa de um terreno comum para começar: acesso. Além disso, as disparidades entre o ritmo da coleta de dados nas grandes empresas e pequenas, novas e locais, provavelmente aumentará com o tempo, presumindo-se que nenhuma regulamentação seja introduzida para o acesso igual aos dados coletados.
Os dados coletados em massa precisam ser considerados um elemento necessário para a cooperação e o crescimento da riqueza em todos os campos, não apenas como uma vantagem competitiva para a grande indústria. Países precisam cooperar e negociar o acesso a dados estratégicos, pois devem se utilizar de tais dados para melhorar a gestão de seus recursos, independentemente de eles terem uma infraestrutura de dados ou não.
Mariana Mazucatto, Diretora do Instituto de Inovação e Propósito Público da UCL, atesta que quando os governos são responsáveis por investimentos de longo prazo, eles devem estabelecer mecanismos para socializar o risco E as receitas. Mazucatto usa o exemplo de grandes vencedores com tecnologia financiada pelo governo dos Estados Unidos; no entanto, este exemplo se encaixa nas questões de dados quando percebemos que os dados são um recurso comum que deve ser considerado como estratégico por todos os países.
O debate sobre a coleta de dados precisa de mais discussão e refinamento - não apenas acordos de privacidade, mas também negociação de acesso. Os acordos sobre a extração de dados devem levar em consideração os benefícios econômicos e sociais para os países onde os dados estão sendo extraídos. Isso é apenas justo.
Atualmente, a independência de dados permanece restrita a discussões sobre a infraestrutura tecnológica que suporta a extração de dados. As discussões sobre privacidade se concentram nos dados pessoais, e não no acúmulo digital de dados estratégicos em silos fechados - uma discussão necessária ainda não abordada. O interesse nacional dos dados não está sendo tratado em uma estrutura de justiça econômica e social. O acesso a alguns tipos de dados, do ponto de vista da formulação de políticas, precisa encontrar um equilíbrio entre os extremos do acesso público aberto e do uso comercial limitado.
Uma nota final, mas importante: a grande maioria das mídias sociais age como silos. As APIs desempenham um papel importante nos modelos de negócios corporativos, onde a indústria controla os dados que coleta sem muita prestação de contas, muito menos a transparência.
Não é apenas uma questão de transparência, mas de competição justa.. (Wael Ghonim, em artigo para o Washington Post)
Essas e outras questões serão discutidas em um workshop sobre Data Fairness no Sul Global, em 21 de setembro de 2018* na Harvard Kennedy School.
*esta postagem foi atualizada para refletir as novas datas do workshop.
(Agradecimentos: obrigado a Talia Gifford, Estagiária Assistente de Pesquisa, Centro Belfer para Ciência e Assuntos Internacionais, Harvard Kennedy School)